1. Tentando entender o que é Espiritualidade
Não são poucos os agentes de pastoral que costumam reclamar: falta espiritualidade em nosso grupo! Quando os cristãos manifestam essa inquietação, o que na verdade, estão demandando? Creio estarem denunciando o fato de se sentirem meros executores de obras meritórias. Sentem-se meros “tarefeiros”. Cumprem tarefas, promovem e participam de muitas reuniões, visitam doentes, sobem em favelas, organizam encontros e assembléias. Trabalham, evangelizam e sentem-se vazios, desmotivados. E alguns, diante das primeiras dificuldades na convivência, no relacionamento com os outros irmãos de caminhada, desistem e deixam o trabalho no meio do caminho. Sim, talvez tenha faltado espiritualidade, porque a Igreja não é uma empresa a que prestamos serviço... Sentimos falta de espiritualidade. Mas o que significa exatamente essa palavra? Evidentemente, ela vem de “espírito”.
Pedimos socorro ao Aurélio e lá encontramos algumas definições para a palavra espírito:
· A parte imaterial do ser humano, a alma.
· Entidade sobrenatural ou imaginária como os anjos, o diabo, os duendes.
· Pessoa dotada de inteligência ou bondade acima do comum: é um grande espírito!
· ânimo, índole.
· Líquido obtido pela destilação, álcool.
Perdemos tempo. Aurélio não nos ajudou, deixou-nos na mão. Mas não nos precipitemos. Aproveitemos alguma coisa. Talvez nos sirvam os conceitos “ânimo, índole”.
Espírito seria aquilo que anima a nossa ‘ânima’, a nossa alma. Seria o nosso entusiasmo, seria a nossa motivação maior, seria o nosso cerne, aquilo que sobra quando tudo acaba.
No AT, o termo que traduz espírito é ruah, que significa hálito. O respiro que pode ser concebido como um princípio ou como um sinal de vida. Lá no Gênesis, o espírito da vida é o hálito. A respiração é o hálito de Deus, o sopro comunicado ao homem por insuflação divina (Gn 2,7). O espírito no AT, originalmente vento e sopro, é concebido como uma entidade divina dinâmica, pela qual Javé realiza seus objetivos.
No NT, o termo que traduz espírito é PNEUMA. Muito semelhante ao sentido e ao uso da palavra ruah: é o movimento do ar, principalmente sopro ou vento. A novidade do NT: espírito como força de Deus, presente em JC e posteriormente nos apóstolos. O Espírito é dado, antes de tudo, ao próprio Jesus no batismo. Em Jo aparece como o Paráclito, o espírito de verdade que o mundo não conhece.
Dessa forma, Espiritualidade seria viver uma vida segundo o Espírito, uma vida no Espírito, aí se contrapondo à vida segundo à carne, à vida na carne.
Essas duas situações fundamentais que caracterizam o ser humano são desafios que exigem uma definição e uma opção fundamental.
1. Uma pessoa pode viver segundo a carne e seus imperativos:
·Organiza sua vida segundo as diretrizes do mundo débil, caduco e mortal;
·Considera sua vida no mundo como a única realidade e obedece aos mecanismos da mortalidade. “Comamos e bebamos porque amanhã morreremos”.
·Fecha-se sobre si mesmo, goza egoisticamente dos bens terrenos e atende indistintamente às exigências das paixões humanas.
·Não vislumbra nada para além do nascimento e da morte.
·Tudo se reduz em construir este mundo, assegurá-lo o mais possível preservado da morte, embora jamais o consiga.
·Para o homem do projeto-carne, a ganância de acumular é inteligência, a rapina é esperteza, a trapaça é habilidade, a corrupção é sagacidade nos negócios, exploração do outro é sabedoria de um trabalho lucrativo.
·CONSEQÜÊNCIAS DA VIDA SEGUNDO A CARNE: impureza, ódios, discórdias, ciúmes, invejas, divisões. (Cf. Gl 5, 19-21).
As Escrituras entendem como sinônimo: andar no pecado. Carne é a debilidade moral, a infidelidade na obediência a Deus.
2. Viver segundo o espírito é outra opção fundamental para a existência humana. Quem vive nessa dimensão não está livre do peso da vida, das tribulações, da dor e da angústia.
· Quem assim vive assume sem lamúrias a condição humana.
· Acolhe a mortalidade e a pequenez como vindas de Deus.
· Para tal pessoa, o mundo não fornece o sentido derradeiro das buscas do coração. Somente Deus pode ser o descanso do inquieto coração.
· A pessoa espiritual vê este mundo com os olhos da eternidade. Esta vida não é tudo.
Viver segundo o espírito é viver filialmente face a Deus na devota obediência de sua vontade. Fraternalmente com os irmãos e senhorilmente frente ao mundo como um livre Senhor e responsável pela reta ordem das realidades do mundo. À luz desta compreensão, Jesus podia dizer: “O Espírito é quem dá a vida. A carne não serve para nada” (Jo 6,33). E Paulo redizia: “As tendências da carne são a morte, mas as do espírito são a vida e a paz”. (Rm 8,6).
Quem vive o projeto do espírito lentamente vai vivificando a carne. Não é possível jogar a carne fora. A vida segundo o espírito não consiste em recalcar ou negar a própria realidade da criação. Pelo contrário, exige um acolhimento e aceitação humilde. Esta atitude tem como conseqüência o triunfo da vida.
Espiritualidade é viver segundo o Espírito do Senhor, tentando fazer novas todas as coisas. É uma resposta pessoal à presença de Deus, uma experiência interior, um encontro pessoal e profundo com o Pai misericordioso. Faz-se como uma oração silenciosa...
A vivência de uma espiritualidade provoca um certo esquecimento de si, generosidade, desapego das coisas, relatividade dos acontecimentos. Qualquer realidade, mesmo as realidades mais concretas e materiais, quando tocadas por Deus, ficam espirituais. Assim, alguém que dá comida a um faminto movido por Deus, faz um ato espiritual.
Viver uma espiritualidade é cultivar a presença de Deus em nós. Presença que envolve todo nosso ser: corpo, sexualidade, afetividade, inteligência, vontade, liberdade, relação com os outros, com as coisas, com o mundo, com Deus.
Qualquer espiritualidade supõe uma experiência de Deus.
Condições para a experiência de Deus:
1. Acreditar que Ele existe, está vivo.
2. Fazer silêncio dentro de si para escutá-lo.
3. Prestar atenção nessa presença.
4. Responder, acolher ativamente sua presença na práxis.
II. A ESPIRITUALIDADE MISSIONÁRIA
Missão sempre evoca uma ação, uma atividade. Quando pensamos num missionário, sempre o imaginamos envolvido em mil atividades. Caminhando, subindo favelas, batendo de porta em porta, atendendo uma fila de centenas de pessoas doentes no sertão nordestino. O missionário é o homem e a mulher incansáveis. Deixaram tudo: família, amigos, país natal e partiram para um desafio que exige, antes de tudo, esforço físico. O missionário, nessa concepção, é um atleta, um ginasta, que precisa ter, antes de tudo, preparo físico. Ser missionário é quase uma malhação.
Dessa forma, ficam imediatamente excluídos da possibilidade de ser missionários: os idosos, os enfermos, as crianças, os monges, as monjas. Fica difícil entender que Santa Teresinha do Menino Jesus seja apresentada como modelo de missionária, aliás, Padroeira Universal das Missões da Igreja.
Dessa caricatura podemos deduzir que o missionário, nessa perspectiva, transforma-se num “tarefeiro”. Cumpre tarefas. Se o missionário não cultivar uma espiritualidade própria, uma mística, bem cedo ele vai pedir aposentadoria. Cansado, extenuado, suado, vai desistir de sua missão, caso não cultive o que podemos chamar de vida interior.
“A Espiritualidade missionária exprime-se, antes de tudo, no viver em plena docilidade ao Espírito, e em deixar-se plasmar interiormente por Ele, para se tornar cada vez mais semelhante a Cristo”. (João Paulo II, a Missão do Redentor, n. 87).
O Papa nos lembra que os apóstolos eram muito limitados. Amavam o mestre, eram generosos na resposta a seus apelos, mas mostravam-se incapazes de compreender suas palavras e eram renitentes em segui-lo pelo caminho da cruz. O Espírito cuidará de transformá-los em testemunhas corajosas e anunciadores esclarecidos de sua palavra: será o Espírito quem os conduzirá pelos caminhos árduos e novos da missão.
Continua o Papa a afirmar que a nota essencial da espiritualidade missionária é a comunhão íntima com Cristo. Não é possível compreender e viver a missão, sem a referência a Cristo.
Como “enviado”, o missionário experimenta a presença reconfortante de Cristo que o acompanha em todos os momentos da vida: “Não tenhas medo... porque eu estou contigo” (At 18,9-10).
O chamado à missão deriva, por sua natureza, da vocação à santidade. Todo cristão só é autêntico missionário se empenhar no caminho da santidade. A vocação universal à santidade está estritamente ligada à vocação universal à missão.
Por isso, o Papa nos exorta a que tenhamos um novo “ardor de santidade”, a sermos “contemplativos na ação”.
Sem o Espírito, o Evangelho é morto e a evangelização é uma simples propaganda. Com o Espírito, entretanto, o Evangelho é força de Deus e a evangelização é um Pentecostes. As técnicas de evangelização são boas, mas mesmo as mais aperfeiçoadas não poderiam substituir a ação do Espírito Santo.
Já podemos falar em SANTIDADE MISSIONÁRIA, cujos elementos são os seguintes:
1. A centralidade de Cristo na vida do missionário e a abertura ao seu Espírito, que chama e envia gratuitamente à missão. Cristo oferece clarividência, paciência e perseverança, força e audácia nas decisões, criatividade na busca de soluções sempre novas. É imprescindível uma assimilação progressiva das motivações da fé em Cristo que nos libertam das ilusões.
2. A pobreza como condição e estilo de vida, que traz um êxodo constante de si mesmo, das seguranças, do desejo de poder. É convite ao desapego, ao desprendimento de certos modelos caducos. Saber mergulhar na ambigüidade da história, sem se escandalizar e sem se perder.
3. Amor eclesial: uma espiritualidade inspirada na missão cultiva uma relação de amor com a Igreja. Apesar das dificuldades e conflitos, o missionário não pode fechar-se num mundo reduzido. Sintonia com a Igreja Particular, afinidade e afabilidade para com o Pastor diocesano, engajamento nos planos pastorais arquidiocesanos. Cuidar para não ser “livre atirador”, solista. Um missionário nunca está sozinho, deve buscar a comunhão e a participação. A eclesialidade supõe sujeição à caminhada eclesial. Mesmo que eu discorde de alguns pontos, não posso me excluir e buscar caminhos pessoais como criança emburrada.
4. Atitude de realismo: é necessária uma espiritualidade impregnada pela realidade. O idealismo do evangelizador não deve distanciá-lo do cotidiano da comunidade humana e cristã. Ver, julgar, agir. Não se esquecer do primeiro passo: VER. Ter senso crítico, não ser ingênuo, estar bem informado. A santidade missionária parte da vida para buscar na missão o sentido pleno da realização dessa mesma vida, tentando alcançar a libertação integral.
5. Abertura sem fronteiras: O amor de Jesus não tem fronteiras, muros, cercas, áreas privadas. “Quem é minha mãe e quem são meus irmãos”? Ter uma espiritualidade sem fronteiras é considerar-se ponte entre a comunidade cristã e os povos de outras religiões. A missão torna-se uma visita respeitosa aos amigos, sem que se invada a casa alheia... O missionário é uma pessoa do diálogo, o que criará condições para a inculturação do Evangelho.
6. Atitude de provisoriedade: a vocação missionária é vocação de movimento, deslocamento. A dinâmica do provisório exige despojamento das ambições e projetos pessoais. Ninguém é insubstituível (o cemitério está cheio de insubstituíveis...). Saber dar lugar, saber a hora certa de partir para outros campos... “não grudar na peroba”... Não temos aqui morada permanente...
A espiritualidade missionária exige confronto com algumas tentações:
A) A tentação do protagonismo: não querer ser estrela. Evitar aparecer muito. Ser fermento na massa, ser “fogo de monturo”. Ex. Irmãzinhas de Jesus, de Charles de Foucauld. Criticar, sem aceitar as críticas, não saber escutar e colaborar... Lembrar-se que a Igreja é de Cristo. Sou mero instrumento. Evitar personalismo...
B) A tentação do fatalismo: Conformismo, desânimo diante da rotina ou da falta de resultados visíveis. Jesus pode fazer também das crises e dos fracassos ocasiões de crescimento. Vontade de largar tudo, jogar o arado para o lado. Lembrar que um planta e outro colhe... Os resultados não vêem a curto prazo. Lançar sementes.
C) A tentação do narcisismo: Eu faço e aconteço... Sei que falo bem e transformo-me num sedutor pela palavra e não pelo testemunho.
D) A tentação do ativismo: Agir sem motivações de fé e sem impregnar a ação com a contemplação. Passar de um projeto a outro sem uma adequada reflexão e sem um sério discernimento no Espírito. Descuidar da oração. Transformar-se numa “lata vazia” que só faz barulho. Dar “show”. Sem conteúdo, sem sentido, sem conversão, sem reconhecimento das próprias fraquezas.